Direita e esquerda não podem viver uma sem a outra. A supressão de uma delas implica directamente a negação da outra. Em termos axiológicos, históricos, económicos e até culturais faz sentido a distinção e sobretudo a dicotomia que estimula o debate. Enquanto ele for mantido na esfera democrática, bem entendido. Ignorando os extremos de um lado e de outro, toda a última semana serviu para demonstrar de forma cabal as diferenças entre os dois, sem subestimar o carácter da crise e o estado de necessidade a esta anexado, a coligação de direita no governo e a própria matriz ideológica dos seus intérpretes.
Quando falamos de políticas intervencionistas do Estado, igualdade social, liberalização individual, mobilidade social, estamos, obviamente, na esfera de uma política de esquerda. É a direita que defende a política do mercado livre, o laissez-faire, a mão invisível. A esquerda é também favorável a uma redistribuição da riqueza e da receita, ao passo que a direita apresenta uma política de aceitação das diferenças provocadas pelo próprio mercado livre.
Claramente, a direita apela à importância das tradições e da ordem comportamental impostas pela história, pelos valores, pela religião e pela cultura já estabelecidos. A esquerda é muito mais dada à liberalização dos modos de vida dos indivíduos. Por isso mesmo, a esquerda é muito mais favorável à mudança enquanto que a direita apresenta-se muito mais conservadora. As questões fracturantes como a liberalização do aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e agora a co-adopção são oriundas da esquerda. São fracturantes porque rompem com as tradições.
A direita defende que apenas através do trabalho e do mérito será possível conseguir a ascensão social, ao passo que à esquerda se acredita que naturalmente essa ascensão ocorrerá, nem que seja pela mão do próprio Estado.
A esquerda prefere o apoio à autonomia cultural e económica das nações e, pelo contrário, a direita surge como favorável à globalização e partilha à escala.
Ambos lados têm pontos em comum e naturais virtudes e defeitos, e na evolução natural do mundo de hoje, muito difícil se torna governar num só sentido.
O sector económico e financeiro que disputa com a política a luta pelo poder, e que com esta crise internacional nitidamente o suplantou, não permite um governo unicamente guiado pela esquerda. O centro, é, há uns anos a esta parte, o espaço ocupado pelos partidos que almejam ganhar eleições, de direita ou de esquerda, apesar de serem identificáveis vários exemplos que permitem distingui-los quando no poder. Na sua raiz histórica (com toda a evolução desde o séc. XIX que seria demasiado exaustivo estar a aqui a expor), direita e esquerda são liberais. A tendência é colocar o liberalismo na direita quando se fala da relevância que esta dá à propriedade e ao mercado. Mas o liberalismo situa-se à esquerda sempre que se opõe ao gosto pelas hierarquias e pelas tradições que são próprias do conservadorismo.
O problema situa-se noutro plano. Cingindo-me agora à situação portuguesa, o problema surge quando o governo da nação, intervencionada por credores ultra-liberais de direita (coniventes com os causadores da crise internacional), se identifica também ele com esse caminho. O caminho do ultra-liberalismo ou neo-liberalismo, tende a aproximar-se do extremo, desvirtuando as virtudes (passo o pleonasmo) da ideologia de direita norteadora deste governo. E assim, o capital e as empresas ocupam o discurso demagógico e populista de quem necessita de fazer dinheiro a qualquer custo, prescindindo do individuo e assente numa retórica de números em que o que interessa é o preço das coisas e não o seu valor, negligenciando os procedimentos legais como temos visto com o TC. Aliás, a judicialização da política é hoje em dia uma defesa intrínseca contra a desregulação e a ilegalidade.
É por isso, que este governo nada tem a ver com a matriz ideológica e histórica dos partidos que o compõem, a não ser nas tais questões fracturantes. O exagero das suas opções ideológicas, seguindo a tendência cega dos usurários credores e fazedores de Estados, adulteram os valores da direita no poder. E é por isso também que a crença cega e exotérica no mercado livre, já por si pernicioso (como se provou), levada ao exagero pode gerar perversões de difícil retorno. A venda de património, de empresas do sector estratégico estadual, de espólios culturais encaixa nesta visão da ditadura do capital. Esta direita no poder não é sensível ao individuo, não tem qualquer preocupação social e não se interessa por qualquer tipo de presença estadual na sua vida, contanto que apareçam números que justifiquem a sua actuação. Assim, a venda de espólios culturais (Miró), a razia na educação e na ciência (bolsas de investigação), a venda de empresas do Estado, estratégicas ou não para o país (PT, CTT, ANA, seguros da CGD, EDP, REN, etc.), o abandono da coesão territorial e do Estado na vida das pessoas (SNS, tribunais), o desprezo pelas instituições ao serviço do Estado (TC), a política mercantilista que impõe os números ao indivíduo (cortes nas pensões, salários, subsídios com o consequente brutal aumento de impostos), ignorando os números da emigração com o objectivo de esconder a real situação do desemprego, a desvalorização do factor trabalho (despedimentos e mais baratos) em benefício do factor capital, tudo junto, fazem deste governo um factor desestabilizador da paz social e das conquistas da democracia como o estado social com implicações graves por décadas. E não, a narrativa da culpa do governo ou governos anteriores já não pega, geralmente empregada à míngua de argumentos. 'Atrás de mim virá, quem de mim bom fará.'